Lore - Tiranos

Tiranos


Texto original

Capítulo Anterior - Kaya, assassina de fantasmas



Velhos hábitos custam a morrer.

E os hábitos mais difíceis de morrer, são aqueles que pertencem aos mortos.

Adriana, capitã da guarda da Alta Cidade de Paliano, sabia disso melhor do que a maioria – seu posto a fazia estar sempre ao lado do grande Rei Brago, que tinha  ficado tão paranoico, em sua vida após a morte (uma reação curiosa à imortalidade),  que fazia a capitã acompanha-lo mesmo nas suas atividades mais banais.

Adriana estava agora no grande salão de jantar - uma câmara de pedra imponente que ecoava mais do que aquecia. Não era aconchegante, mas o rei preferia ter suas reuniões aqui por alguma razão.

Ele parecia confortar-se nas grandes bandeiras que ostentavam a marca da sua cidade, suas espadas e sinetes expostas nas paredes... Brago parecia estranhamente satisfeito em passar sua morte entre as coisas que ele costumava tocar e possuir. Ele nunca pareceu triste por não poder segurá-las, mas ele nunca parecia triste com nada - Ele sentia muitas outras coisas, mas pena, inclusive por si próprio, não era uma delas.

Porém, não cabia a um capitão questionar seu rei, de modo que Adriana inclinou-se para a esquerda tentando aliviar uma cãibra em sua panturrilha direita, enquanto esperava-o   terminar de fingir.

Rei Brago estava sentado à cabeceira de sua mesa de jantar, ante um prato limpo e talheres de prata brilhantes, sussurrando em silêncio e pacientemente com os dois fantasmas Custodi que pairavam nas cadeiras à sua esquerda. As vozes dos mortos, muitas vezes tornavam-se silenciosas com a idade, e, da posição de Adriana, perto do fundo da sala, o tilintar de sua armadura era o único barulho que ela ouvia.

Os três fantasmas estavam discutindo negócios da igreja, e por algum abastardamento do hábito, estavam fazendo isso na frente dos pratos vazios. Quando eles moviam as mãos na conversa, eles curiosamente, desviavam dos copos vazios e taças estéreis.

Adriana tinha servido o rei por muitos anos. Ela sabia que, mesmo na morte, ele mantinha uma espécie de memória muscular em relação aos costumes da vida. Fantasmas não eram nada de especial, mas nunca ninguém virara um, propositalmente. Quando ele manteve o seu título após a morte, Adriana teve uma revelação assustadora - Se seu senhor nunca iria morrer, ela estava condenada a servir-lhe por toda a sua vida.

Capitães no passado tinham servido à várias gerações de realeza, mas ela estava condenada a apenas um.  O trono de Paliano estava interditado. A sucessão tinha parado há muito tempo.

A memória desta descoberta não aliviou a cãibra na perna.

De vez em quando, ela fisgava uma ou duas palavras trocadas entre os fantasmas. Eles pareciam estar discutindo o sucesso de sua eliminação do cogwork das ruas de Paliano. Eles pareciam satisfeitos com o fechamento da Academia, felizes de que aqueles que eram contra eles estavam sumidos ou mortos.

Ela tinha sido ordenada para ajudar a acabar com a insurreição, então. Para desmontar a Academia, para purgar a busca da invenção e inovação da cidade.

Um sussurro de culpa viajou pela mente de Adriana. O rei, que ela servira em vida, havia se tornado cruel em sua morte. Ela nunca iria admitir isso em voz alta, mas ela sabia disso em seu coração.

Os fantasmas concluíram a reunião, os Custodi levantaram-se, e Adriana avançou para escoltá-los para fora. Uma criada entrou atrás dela para limpar os pratos (Será que eles limpam mesmo? Isso não é um tremendo desperdício de sabão? Adriana perguntou-se). Rei Brago acenou discretamente para seu capitão, e Adriana respondeu, levando o líder do clero para fora da sala de jantar, até o corredor. Os dois se moviam, cautelosamente, com um frio no ar em torno deles, maior do que o normal.

Três minutos de caminhada pelo corredor, os dois fantasmas pararam em frente à porta principal. "Capitão Adriana ..." Eles sussurraram. Adriana parou. Ela nunca tinha sido abordada diretamente pelos Custodi antes.

O Custodi mais próximo dela levantou as mãos em bênção. Dedos fantasmagóricos gelados tocaram em sua pele - ombro, ombro, testa. Adriana recebeu a bênção de boa vontade, mas se perguntou distraidamente por que eles estavam partindo com um adeus tão formal.

Os espíritos partiram, e Adriana virou-se, feliz,  para aliviar a cãibra na perna com uma breve caminhada.

Um barulho repentino, mas distante, porém, chamou sua atenção e ela caminhou rapidamente para a fonte - o vestiário? A despensa? A copa!

A criada que antes segurava um monte de pratos e talheres em seus braços, ia atirando-os no lixo, um tesouro de porcelana, após o outro, suas jornadas  terminando com um estalar alto, na lixeira.

"Menina!" Adriana gritou.

A criada deixou cair um prato, assustada.

"O que você está fazendo? Isso é propriedade da coroa."

"Sua Majestadde... Ela não gostou dos pratos", a menina disse com os olhos alarmados.

Ela?

"Não há nenhuma rainha neste castelo."

"O chefe disse que eu não deveria dizer nada sobre Sua Majestade para você."

A mão de Adriana agarrou o punho da sua espada, ela girou nos calcanhares, e caminhou rapidamente até as escadas, de volta para o grande salão de jantar. O som de mais pratos sendo atirados o lixo ecoou no corredor de pedra atrás dela. Os arrepios, onde o Custodi a tinha abençoado,  começaram a parecer-se, mais e mais, com um pedido antecipado de desculpas.

Seus olhos correram para os outros servos pelos quais ela passou.

Um rapidamente desviou o olhar. Outra escapou através de uma passagem para os quartos dos empregados. Um deles foi sacudindo uma nova bandeira – rosa com espinhos, costurada em veludo.

Adriana começou a correr em direção ao seu rei.

O couro de suas solas batia na pedra sob os pés e as bordas de sua armadura batiam-se, em sua pressa, e quando ela irrompeu no grande salão de jantar, ela parou estupefata.

No momento, ela reagiu imediatamente, mas na memória, pareceu uma pequena eternidade.

No outro extremo do grande salão de jantar, uma mulher com uma jaqueta estranha, imobilizando o Rei Brago (como ?!) e um punhal rondel enterrado no pescoço dele.

Pela primeira vez em sua vida, Adriana não conseguia reagir. A mulher parecia bem sólida, para ser um fantasma, mas, mesmo assim, enquanto ela lutava para aprofundar o punhal seus braços moviam-se com um borrão estranho de luz violeta.


A boca do rei abriu-se em um grito silencioso . A mulher mudou o punhal, brilhando violeta, de mão, e encontrou os olhos com os de Adriana, do outro lado da sala.

O capitão da guarda da Alta Cidade de Paliano lembrou-se como respirar.

E então ela se lembrou qual era seu trabalho.

Ela correu.

Adriana não conhecia a natureza do seu inimigo, mas conhecia a de seu rei. Ela desembainhou sua espada e golpeou através da face do rei Brago em uma tentativa de cortar a assassina.

A adrenalina e medo estendiam os segundos.

No instante de seu golpe, Adriana cruzou olhos com o assassino. Quando a espada passou sem causar danos através da face de Brago, ela viu a carne da assassina tornou-se violeta translúcida, os olhos da estranha perfurando Adriana.

Seu ataque negado, Adriana rapidamente deixou cair a espada e pulou para a frente, quando a assassina largou o “corpo” de Brago. Adriana instintivamente tentou apanhar o rei, e ficou chocada quando realmente conseguiu.  O vínculo espiritual que Brago tinha com sua armadura estava morrendo com ele, e Adriana se viu segurando a armadura com o espírito de seu rei morrendo dentro dela.

Sua morte foi diferente de qualquer uma que Adriana havia testemunhado antes. Era impossível desviar o olhar.

A ferida no pescoço de Brago, onde o assassino havia enterrado a faca, ia, rapidamente, corroendo a pele fantasmagórica, que ia se deteriorando e se dissipando em uma necrose violeta, espalhando-se a partir da garganta, viajando sobre sua pele, deixando nada além de ar na sua esteira.

 Então, em questão de segundos, o rei havia desaparecido.

A coroa delicadamente brilhante do Brago, tornou-se física, com a ausência de seu hospedeiro, e caiu no chão.

Sua espada permaneceu embainhada no cinto.

Onde seu rei uma vez estivera, agora havia uma pilha de armaduras cintilantes, brilhando nos braços da Capitã Adriana.

A assassina olhou para Adriana, com um olhar de realização ligeiramente entediado.


Adriana puxou a espada de Brago da bainha. Ela não tinha certeza do próximo movimento da assassina, que demonstrava a confiança preguiçosa de alguém que acabou de acordar - vestida para uma noite no pub, em vez de um dia nas arenas de luta.

Era detestável.

Adriana correu para ela, a espada reluzente de Brago firme na mão.

"Vilã!" ela rosnou.

Adriana enfiou a espada diretamente onde fígado do assassino estaria. Em um instante, o estômago do assassino mudou para um violeta bizarro e translúcido, e a espada passou através dela.

O que deveria ter sido uma lesão de tirar a vida, era apenas uma inconveniência menor – a assassina sorriu do choque que congelava Adriana.

Adriana recobrou-se e rapidamente puxou a lamina, cortando para cima. A espada passou pelo torso, de repente roxo, saindo pelo ombro. Para sua surpresa, porém, Adriana acertou uma cotovelada, muito corpórea, na mandíbula do assassino, no final do movimento.

Adriana não estava esperando isso.

A capitã da guarda desajeitadamente equilibrou-se,  e, propositadamente, recuou para avaliar o seu adversário.

"Eu fui paga por um só. Eu não vou matá-la", disse o assassino.

A raiva de Adriana fervia através de respiração irregular. "Lute limpo, covarde!"

Os lábios da assassina se separaram em um sorriso divertido, e ela deu uma piscadela brincalhona.

A capitã da guarda respondeu cuspindo diretamente nos olhos da estranha.

Em um instante o rosto do assassino brilhou com transparência intencional e a saliva bateu na parede atrás dela.

"Nunca tive que me esquivar disso antes", disse ela, sorrindo, e dando um passo adiante através da armadura vazia de Brago no chão. Seus pés e pernas brilhavam com o mesmo violeta estranho, quando ela passava.

"Você dedica uma enorme quantidade de esforço para defender um traje vazio", disse a assassina com um sotaque malicioso.

"Aquele homem era o nosso rei"

"Eu ouvi dizer que ele era um traje vazio muito antes de eu colocar meu punhal nele. E antes disso, que ele era um tirano", disse a assassina. "Enquanto tiranos morrerem, a chance para a liberdade vive."

Adriana foi atingida por uma onda estranha de culpa. Ela não sabia como responder a isso.

A assassina fez uma reverencia casual, mantendo o contato visual com a capitã da guarda.

"Foi um prazer fazer negócios com você."

A estranha endireitou sua jaqueta e sumiu no chão,  em uma ondulação rápida violeta.

Adriana só podia olhar silenciosamente para a mancha no chão enquanto ela desaparecia completamente. Os estábulos estão diretamente abaixo. Não há nenhuma maneira de eu pegá-la a tempo.

O grande salão de jantar estava silencioso. Nesse momento de silêncio, Adriana deixou escapar o fôlego em um suspiro. A armadura e coroa de Brago estavam em uma pilha, no local onde ele caíra. Nenhuma evidência permanecia do seu espírito, salvo o brilho suave que permanecia em sua armadura e coroa, agora físicas. Adriana nunca tinha visto um fantasma morrer antes, talvez fosse normal que os seus trajes se materializassem, quando seus espíritos desapareciam em uma segunda morte.

Nada disso fazia sentido. Nada disso era possível.

Fui uma tola em aceitar esta posição, pensou Adriana. Meu trabalho era proteger o rei, e eu falhei em proteger um homem que não podia ser morto. Eu não sirvo para nada...

O castelo começou manifestar-se ao ocorrido - Bandeiras com uma rosa espinhosa foram desfraldadas. Servos vinham com curiosidade inspecionar a armadura vazia no chão.

Adriana ficou em silêncio na parte de trás do grande salão de jantar.

Seus dedos roçavam o punho da espada de Brago. Ela supôs que o item estaria mais seguro em suas mãos.



Os Custodi coroaram a Rainha Marchesa, a primeira de seu nome, no dia seguinte.

A cerimônia foi realizada em uma sala do trono impecavelmente decorada. Bandeiras ostetando o sinal da Rosa preta em vigas recém-espanadas, uma nova armadura de placas espinhosas brilhava nas luzes de velas. O ar era fresco, com o cheiro de prímulas raras e tecidos novos.

A equipe castelo olhava para a nova rainha com familiaridade. O Custodi seguiu o rito da cerimônia de coroação. Nenhum dos representantes da elite de Paliano parecia despreparado.

Todo mundo estava pronto.

Todo mundo sabia.

Adriana queria matar cada um desses traidores. Cada polegada da sala ostentava o sigilo da nova rainha. Estava tudo errado.

No início daquela manhã, quando ela tinha falado com o guarda, Adriana ficou aliviada ao encontrar todos eles tão perdidos quanto ela. O grande segredo tinha sido bem escondido deles, e a capitã da guarda ficou aliviada ao ouvir que  a sua companhia queimava com a mesma confusão e raiva que ela.

Eles estavam agora em suas costas, guardando cada porta. A guarda devia obediência à coroa e igreja, mas nenhum deles estava feliz com isso. A espada de Brago tinha permanecido firme na sua  mão durante toda a cerimônia.

Marchesa, a Rosa Negra, estava no meio de tudo aquilo, o maestro brilhante de uma sinfonia hedionda. Seu vestido era prudente e suas jóias humildes, à exceção  da coroa fantasma reluzente no alto da cabeça. Adriana fez tudo o que podia para não revirar os olhos na tentativa óbvia de vestir trajes modestos para agradar o Custodi.

Assim que os espíritos terminaram a coroação, e a coroa fantasmagórica de Paliano sentou-se sobre a cabeça de Marchesa, Adriana agiu rapidamente para segui-la aos aposentos reais. Ela caminhou por trás da nova rainha, passando por um mar de olhares desviados, seguida por um bando de criadas em seu rastro.

Enquanto caminhavam, Adriana começou a perceber quanto dinheiro deveria ter custado aquele esforço. Subornos para pagar o Custodi. Dinheiro para pagar os funcionários. O pagamento da assassina...

E depois havia a questão da montanha de tecidos bordados com a rosa, que adornavam as paredes, corpos, cavalos do castelo.

__

E eu não tinha idéia. Eu protegi  um fantasma paranóico por tanto tempo, e eu não tinha idéia.

Adriana parou.

Se eu soubesse, eu teria impedido? Brago era cruel. Ele merecia uma segunda morte.

Adriana observava Marchesa, enquanto a comitiva marchava para o andar de cima. O que aconteceu antes, aconteceria novamente. Um rei seria coroado, morto, substituído. Uma rainha seria coroada, morta, substituída.

E quantas centenas de seus compatriotas iriam morrer para perpetuar este ciclo hediondo?

É um ciclo sem fim.

Tudo o que estamos fazendo é alimentar essa máquina terrível.

A raiva encheu o coração de Adriana ao perceber as palavras do assassino ecoarem em sua mente. Enquanto tiranos morrerem, a chance para a liberdade vive.

Paliano tivera sua chance de liberdade com a morte de um tirano, mas em vez dela, ganhou apenas uma nova tirana. Matá-los não é suficiente. Como podemos transformar essa oportunidade em certeza?

Marchesa parou em frente das portas de seu quarto e permitiu que uma serva a pajeasse. Adriana seguiu, esperando pacientemente na porta, enquanto as servas ajudavam a nova rainha a mudar do vestido de coroação, para o vestido que usaria para abordar o público pela primeira vez.

Suas aias iam revelando camada após camada escondida. Vestido. Partlet. Anágua. Corpete...

Quando ela estava apenas de meia e peças íntimas, as servas construíram uma nova “fachada” em sua volta, novamente. Desta vez com roupas mais luxuosas e bem-feitas do que antes.

Adriana podia ver os pontos que escondiam inúmeros bolsos internos, para esconder bolsas de venenos raros. Corpete. Anágua. Partlet. Vestido. As aias terminaram a opulência sem fim, com uma placa peitoral.

Não havia sedução naquele ritual, apenas uma dominância simples – “Camadas intermináveis ​​contendo segredos intermináveis. Você vê o quanto eu carrego? você pode imaginar o quanto eu escondo?”

Uma vez que o último laço foi apertado, Marchesa enxotou suas aias. Adriana continuou firme, em posição, diante da rainha de veludo da Alta Cidade de Paliano.

"Eu sinto que você tem palavras para mim", a mestra dos venenos balbuciou. "O meu  discurso de coroação para os cidadãos começa em breve, por isso, poupe o meu tempo."

"Não é assim que o direito de sucessão funciona."

"Não é assim que o direito de sucessão funciona, vossa alteza".

Adriana engoliu um grunhido. "O Custodi alegou que o rei Brago deixou um testamento a declarando sua herdeira. Bem, eu não sou nenhum estudioso, então talvez você possa me explicar por que um fantasma precisaria de um testamento."

A nova rainha sorriu. Sua resposta veio facilmente. "Os eternos não têm necessidade de proteger seus ativos, é claro. Mas os Custodi estavam bem dispostos a aceitar documentos legais devidamente formalizados."

A armadura da capitã da guarda tilintou quando ela deu um passo adiante. "Brago teve descendentes, suas filhas são-"

"Velhas e senis. E seus filhos e filhas, tão ruins quanto elas. Eu lidei com eles há um tempo atrás, no entanto, e aconteceu que o meu nome era o próximo na linha de sucessão."

O nome dela? A família de Marchesa estava no fim da árvore da família real. Adriana sentiu náuseas. Ela se manteve firme enquanto Marchesa caminhava calmamente perto dela, sentando-se delicadamente para aplicar batom, vermelho-sangue, nos lábios.

A pergunta escapou sem restrição. "Quantos sucessores que você matou?"

"Eu só matei Brago", disse Marchesa com os olhos rolando, entediados. "Bem, Kaya matou Brago. Eu paguei. O resto da família do ex-rei se envolveu em uma denúncia bem grave, e os Custodi receberão um dízimo saudável durante cada ano do meu reinado".

A rainha se levantou e sorriu com os lábios pintados à veneno, "Rezo para que todos que me chamaram de filha caída de uma casa caída,  aproveitem sua queda da Alta Cidade".

Adriana tinha conhecido  muitos inimigos em seus anos de serviço. Ela tinha lidado com sua cota de pragas domésticas também. Esta serpente não era diferente. "Nossa cidade não vai se entregar tão facilmente."

"Eles já o fizeram", Marchesa disse claramente. Ela levantou-se e abriu uma caixa sob a janela. De onde Adriana estava ela podia ver, uma armadura brilhante. A rainha levantou a couraça preta, adornada de rosas, de modo que a capitã pudesse inspecioná-la de onde estava. Era claramente feita sob medida para ela.

"Você já sabe que eu não colocarei isso em você."

"Eu senti que deveria oferecer, pelo menos."

Adriana balançou a cabeça em descrença. "E o que acontece com as pessoas?"

"Eles vão me adorar", disse Marchesa, deixando o peitoral de lado,  e retornando à sua penteadeira.

O coração de Adriana acelerou de raiva. "E se eles não te adorem?"

Marchesa, obviamente, não tinha pensado nisso. Ela encontrou os olhos de Adriana, enquanto a capitã continuou.

"E se você sair para seu discurso de coroação e milhares de cidadãos chamarem-na  de tirana?"

"Então eu vou ser tirânica".

Adriana se recusou a desviar o olhar da rainha. "Você não vai me matar. Se o fizer, a guarda vai retaliar sem pensar duas vezes."

Marchesa deu de ombros e voltou a colocar anéis. "Infelizmente, sua dedução é correta. É do meu interesse permitir que você viva", disse ela, com os olhos deslocando-se. "E é do seu melhor interesse permanecer na lin-"

Adriana cuspiu no rosto da rainha.

Desta vez, o cuspe atingiu o seu alvo.

A Rosa Negra, pela primeria vez na vida, foi pega de surpresa. Ela sentou-se em horror atordoada, a mão tremendo enxugando saliva de seu olho, enquanto Adriana pegou o peitoral  e saiu.



Adriana não perdeu tempo.

Ela foi imediatamente para onde o resto da sua guarda estava e disse-lhes para encontrá-la depois do discurso de coroação. Ela, então, apressou-se para os estábulos e amarrou o maldito peitoral adornado com rosas a uma corda, engatando-o na parte de trás de sua sela, para arrasta-la no chão atrás dela.

Adriana montou em seu cavalo e começou a andar.

A multidão indo para o discurso da rainha abria o caminho para ela passar. Olhem para o seu capitão, Adriana pensava, e vejam o que eu penso de sua nova rainha.

À distância, ela podia ouvir o discurso de Marchesa, amplificado para todos ouvirem. "A ex-capitã se aposentou, com agradecimentos de nossa bela cidade e uma generosa pensão do trono que irá apoiá-la para o resto da sua vida, por mais longa que seja."

Adriana revirou os olhos e fez seu cavalo seguir em frente. Ela andava em direção ao bairro dos Ladrões, passou por centenas de seus concidadãos, e, então decidiu que faria um discurso também.

Ela parou, olhando para os rostos confusos e alarmados do seu povo. Do alto de seu cavalo Adriana sentiu o poder que ela sempre permitiu que outros exercessem. Ela estava cansada de apenas observar, enquanto aqueles ao seu redor controlavam tudo.

Ela falou com com convicção inatacável. "Ficar do lado de Marchesa, é ficar  a serviço de uma coroa verdadeira, repousando sobre uma cabeça falsa, e, portanto, é ser um traidor!"

Adriana ergueu a espada de Brago e bateu no símbolo de sua cidade em seu escudo. "Se a bandeira dela não é a sua bandeira, então não se curve. Se seu governo é ilegítimo, então, assim também são as suas leis. Se ela não é verdadeiramente rainha, então, os servos do trono não são melhores do que seus espiões e assassinos, e devem ser tratados como tal! "

A multidão ressonava com gente concordando e o espírito de Adriana elevou-se. Eles estão fartos do ciclo também.






Nas semanas que se seguiram, a paz forçada de Brago deu lugar à inquietação profunda de Marchesa. Aqueles que serviram na guarda de Brago quebraram seus juramentos à coroa e, sob a cobertura da escuridão,  patrulhavam as ruas fornecendo proteção para os cidadãos.

Com cada por de sol,  o símbolo da cidade era substituído, e tornava-se um marcador confiável de quem se podia confiar na noite.

"Você está com a cidade?" o graffiti perguntava de transeuntes em lugares tranquilos da cidade. Os cidadãos da Alta Cidade Alta ouviam os rumores e sentiam a inquietação. Eles ouviam os decretos de uma rainha venenosa e o silvo de corrupção que seus partidários semeavam. Os cidadãos ouviam tudo, e Adriana ouvia ainda mais alto.

Mas depois de seu discurso no Bairro dos ladrões, ela segurou a língua. Sua voz não era o que deveria governar o povo. Eu sou a mão que protege a voz, ela sabia. Eu sou aquele que resolve os problemas.

E assim, três luas depois da noite do regicídio, ela viajou sob a cobertura da escuridão para a casa da pessoa que ela sabia que poderia ajudar.

Adriana não dormia há dias. Ela estivera ouvindo. Ouvindo sua guarda, ouvindo os cidadãos, ouvindo o que as pessoas precisavam e por que eles não estavam sendo tratadas com respeito por um líder que deveria amá-las. Tudo o que ouvira tinha provado uma coisa: Paliano não precisava de uma monarquia que se escondesse atrás de castelos e assassinos, e, sim, de um líder que compreendesse Fiora.

Alcançando seu destino, Adriana calmamente bateu em uma porta ornamentada, de madeira estrangeira resistente. A porta rangeu, e ela foi recebida por rosto que qualquer um em Paliano reconheceria instantaneamente.


A exploradora élfica Selvala estava do outro lado da porta e encarava o convidado inesperado.

"Adriana? Você traz novidades?"

"Eu trago uma proposição."

Selvala levou um segundo para avaliar a ex-capitã. Ela assentiu, e silenciosamente deixou Adriana entrar.

A casa de Selvala era pitoresca e modesta; a casa de um viajante, sempre longe de casa.

Adriana deixou seu manto perto da porta e juntou-se ao elfo em uma mesa na frente de um fogão a lenha. Selvala, seguindo o hábito de seu povo, em silêncio, esperou que a ex-capitã da guarda declarasse suas intenções.

Não há outras opções, Adriana sabia. Se ela não disser sim, então o futuro da nossa cidade está perdida para os tiranos sempre.

Adriana aceitou uma pequena caneca de chá que o elfo tinha posto sobre a mesa. Ela olhou Selvala nos olhos e juntou coragem para o passo mais importante que ela já tinha dado.

"A Monarquia Paliana não é estável. É um ciclo sem fim de assassinato e de violência", disse Adriana, voz firme e confiante na privacidade da casa do elfo.

Selvala assentiu. Um pequeno movimento, carregado de convicção.

"Se nós, como cidadãos desejamos viver a possibilidade de liberdade, o ciclo deve ser interrompido. Você é respeitada entre as pessoas e uma força unificadora para a nossa cidade", Adriana continuou, "o melhor candidato para um senador que eu posso pensar."

Os olhos de Selvala se arregalaram de surpresa.

Adriana se inclinou para frente em sua cadeira, coração ardente com a convicção de uma cidade inteira. Ela permitiu que um sorriso raro escapasse de seus lábios enquanto fazia a pergunta mais importante que ela nunca iria perguntar em sua vida.

"Você vai nos ajudar a construir a República da Paliano?"

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