Lore - Instruções Manchadas de Sangue

Instruções manchadas de sangue






A noite estava horrivelmente quente, e os fogos de artifício nas ruas mantinham Paliano iluminada.

Um sentinela solitário estava em seu
posto. 


À distância, o Festival da Graça da Nossa Senhora Soberana se desenrolava. Profusões obscenas de cor e luz abriam caminho através da praça, declarando o amor do povo para o seu novo soberano. Bebida fluía.


Na manhã deste mesmo dia eles questionavam  a legitimidade do trono de Marchesa, mas à noite, eles lhe cantavam louvores.

A sentinela, no entanto, não tinha nem música, nem bebida.

Ele até considerou abandonar seu posto, mas não, ele permaneceu firme, guardando a casa do velho , um membro da Academia caída. Um decreto real tinha dissolvido recentemente a instituição, por muito tempo considerada a sede de conhecimento e estudo. Despojado de sua estatura profissional, o acadêmico era agora simplesmente um cidadão. Um cidadão muito velho e muito paranóico. Noite após noite ele assumia seu posto aqui. E noite após noite, o acadêmico lhe dizia para manter-se alerta. E isso irritava o guarda. Ele sabia que o acadêmico tinha sido instrumental para a criação do cogwork de Paliano, mas a instituição fora banida. Por que se com alguma relíquia esquecida de uma instituição morta?

No beco à sua frente, o sentinela avistou um sorriso cheio de dentes. Um goblin, pequeno, provavelmente apenas uma criança.

O guarda acenou. "Vá para casa, garoto."

O goblin sumiu, de volta para as sombras.

Então, de repente, algo veio voando  do beco. Pequeno e redondo. Ele formou um arco através do ar em sua direção. Um tomate, já passado, que espalhou-se em toda a armadura cuidadosamente polida, como o sangue.

"Garoto, suma daqui!"

Das sombras de um beco adjacente, outro projétil foi arremessado em direção a ele. Uma maçã desta vez, com um impacto no capacete que fez seus ouvidos zunirem. Ele girou na direção de onde viera o ataque. Uma saraivada de legumes -  alfaces, cenouras - voaram em direção a ele. Era como se alguém tivesse catapultado um carrinho de frutas.

Do beco, ele podia ver uma dúzia de olhos em rostos verdes. Eles riam e riam. O som parecia reverberar ao redor dele.

"Malditos goblins, o que vocês querem?"

Em seguida, um ruído por trás dele. Ele virou-se novamente, para ver uma  garrafa de vidro, voando pelo ar da noite, em sua direção.

Ela caiu aos seus pés, espalhando um líquido que, instantaneamente, entrou em chamas. Ele tropeçou para trás, chamas ardendo na rua. Ele olhou em volta e viu a turba.

Eles sorriram para ele. Alguns traziam tochas, alguns armas, um tinha um carrinho cheio de legumes podres.


Arma em punho, ele correu para eles. A multidão de goblins se virou e dispersou-se, tropeçando, abandonando o carro, e fugindo de sua ira, rindo o tempo todo.

Esperando nas sombras nas proximidades, Daretti se mexeu desconfortavelmente na cadeira.

Ele observou, o guarda perseguir a turba goblin. "Bufões", disse ele. "Amadores".

A rua estava vazia novamente, mas a distração mal parecia uma certeza.

Do lado dele, Grenzo mancava entre os paralelepípedos, uma figura encurvada, mas desmedida de um goblin. "Eles são incontroláveis", disse Grenzo, sorrindo, "como um incêndio. Você só precisa que comece no lugar certo." Ele chegou à porta desprotegida, a sua enorme estrutura apoiada em sua bengala. Três de seus minúsculos lacaios correram para alcançá-lo.

Daretti agarrou os braços da cadeira. Esta não era a noite delicadamente orquestrada de vingança que ele tinha planejado.

Grenzo olhou para a porta e apertou a maçaneta. Ela estalou, com um ruído metálico, mas recusou-se a ceder.

"Você vai pelo menos, manter um mínimo de silêncio?" Daretti resmungou.

"Bah! Fique sabendo que eu já arrombava portas quando você nem tinha pelos na cara." Uma pancada de bengala e a porta caiu no chão. "Se Marchesa quer pendurar seus venenos e usar um chapéu novo, o problema é dela, mas se ela quer tirar minhas chaves e trancar-me fora das minhas masmorras, então nós viremos para a superfície e iremos fazer nossas próprias portas". Os goblins responderam com um coro de aplausos dementes.

Daretti fez uma careta e olhou por cima do ombro.

"Você se preocupa demais. Abrace o desconhecido. Além do mais," disse Grenzo, apontando para os fogos de artifício explodindo ", quem poderia ouvir-nos?" Grenzo acenou e seus lacaios correram. "Vão em frente e reivindiquem sua recompensa, meus lindos filhotes!" Ele deu um passo para dentro, na escuridão, absorvendo os tesouros da vila.

A multidão de goblins inundou o hall de entrada, cobrindo as colunas Trestianicas cristalinas de mármore com impressões digitais de querosene. Um agarrou a pele de um felino albino raro de uma cadeira e a vestiu como uma capa. Do teto abobadado acima deles, retratos emoldurados de antepassados ​​aristocráticos, assistiam tudo com repúdio.


Daretti entrou com mais cautela, manobrando a cadeira pela porta caída. "Talvez, meu velho, talvez, mas considere: quem conseguiria dormir com tudo isso?"

No andar de cima, Zadrous Fimarell rolava em sua cama. Ele podia ouvir a pompa e grandiosidade da festa, mesmo através de janelas trancadas. Através das cortinas, flashes de vermelho berrante, azuis, roxos, verdes e dos fogos de artifício iluminavam seu quarto. Os óculos que ele tinha deixado em sua mesa de cabeceira vibravam com a batida dos músicos bêbados - um som não tão desconhecido para ele, um dia - Houve um tempo em que esses arautos anunciavam sua chegada. Houve um tempo em que ele comandara multidões. Ah, os seus dias da Academia... Ele tinha sido seu grande destaque. E eles tinham sido o seu mundo. Um mundo pelo qual ele passeava com facilidade. Famílias abriam as portas para ele e ele usou o sistema como um mestre. Ele nunca foi um gênio, ele sabia disso, mas uma invenção, o cog universal (e nem isso se poderia dizer ser realmente uma invenção ), apertos de mãos, alguns livros, algumas palestras, e ele estava feito para toda vida. Os  Muzzios do mundo que se acabassem em seus laboratórios.

Até que tudo desabou ...





Três guardas da cidade estavam inconscientes no chão, presos sob uma estante derrubada. Vasos quebrados e pinturas mutiladas estavam por toda parte, um sinal da luta com os goblins.

Enquanto seus subalternos davam conta da tarefa de amarrar os guardas, Grenzo tirou seu saco de saque e voltou para as paredes de estantes.

"Eu juro que você me disse que esse cara era uma espécie de figurão. Mas tudo isso é lixo. Nosso esgoto úmido é mais luxuoso do que este barraco." Com um movimento de sua bengala, livros caíram ao chão. Ele bateu na parede atrás. Nada.

"Eu disse que ele era considerado um visionário no campo da cogwork." Daretti levantou um volume caído. Ele sorriu.

“Princípios de Cogwork Autonomia: Um Tratado Abrangente sobre Construir Vida mecânica”.

Daretti folheou as páginas, mas ele sabia tudo de cor. "Mas a sua observação é precisa. O professor é, em todos os aspectos, uma fraude."

Grenzo mudou-se para uma mesa de madeira nobre muito bem esculpida, incrustada com pedras opalinas. Cada gaveta estava cuidadosamente trancada. Com um impulso, ele trouxe sua bengala para baixo, no centro da mesa. Lascas de pau-rosa voaram e fechos espalharam-se pelo chão. Dentro, ele não encontrou nada, apenas pilhas e pilhas de papéis.

Daretti pegou um e leu. Era uma nota pessoal de um suposto aluno formado com honras. Cheio de elogios efusivos para Fimarell, o "gênio".

Grenzo pegou um punhado deles e deixou-os cair no seu saco.

"Qual é o seu objetivo aqui, velho?" perguntou Daretti. "Isso não é nada, apenas lixo."

"Não", disse Grenzo, içando sua bolsa por cima de sua corcunda. "Isso é combustível."

Daretti fez uma careta. No volume havia um pedaço de papel dobrado. Ele abriu-o.

"Ha! Velho, você sabe o que é isso? São os planos para uma sentinela cogwork. Um dos primeiros de seu tipo, destinada à segurança municipal."

Ele colocou a folha sobre a mesa.

"Olhe estes apêndices, uma bagunça. Os requisitos de energia, sozinhos,  custariam uma pequena fortuna. Lixo. Você pode imaginar a equipe de técnicos que teria exigido para-"

"Nhenhenhé... É tudo lixo! Cada palavra! Você deu a sua vida para a academia, você dedicou sua vida a essa manada de jumentos. Você implorou por migalhas deles. Você confiou  naquele aprendiz, Muzzio, e o que ele fez com você? o que todos fizeram com você? Bem, a academia está morta e Muzzio foi exilado. E você sabe por quê? Porque tudo o que é preciso, são algumas portas arrombadas, algumas grandes invenções soltas pelas ruas , e todo mundo joga a razão no lixo. " Grenzo se aproximou. "Toda a sua preciosa cogwork  está quebrada, espalhada, e fora da lei. Tudo ao que você se dedicou está morto. E nós, somos as hienas limpando os ossos. Agora, pare de agir como um cientista e comece a agir como uma hiena."

Daretti parou. O selo da Academia, na parte inferior dos planos brilhou, dourado. Daretti devolveu-o a Grenzo.

Combustível.

Daretti assentiu. "Queime. Queime tudo. Queime as cinzas. Queime os culpados. Queime os justos".

Grenzo sorriu.

Daretti olhou para algo entre os papéis sobre a mesa. Seus olhos se arregalaram. Ele retirou um pergaminho amarelado. Suas mãos tremiam. "É isso, meu velho. É isso!" Ele engoliu em seco e falou com cuidado. "Eu acredito que é hora de nós, hienas, pararmos de fuçar em torno deste cadáver e procurar um mais fresco." Sua cadeira estalou, em movimento, e levou-o para as escadas. Daretti movia-se com propósito agora. O sorriso de Grenzo alargou-se.

Eles subiram a escadaria de mármore.

No topo, Daretti deu  uma parada súbita. Ele deixou cair os papéis cuidadosamente no colo e começou a esvaziar os bolsos, procurando algo.

"Eu esqueci." Ele se virou para Grenzo e deu um olhar suplicante. "Devo ter perdido. Precisamos voltar,  eu não posso prosseguir sem o meu discurso."

"O quê? De repente, você não pode falar?"

"Não, e eu estou tão surpreso quanto você."

"Olha, cérebro, você dá conta."

"Grenzo, eu não consigo. Minha mente virou um espaço em branco. Toda a  preparação para nada. Vamos selar a porta, vamos arrastar os guardas para fora, devolver os papéis. Vou revisar o discurso e voltamos amanhã à noite."

“Filhote, você pode até repor a fechadura em uma porta, mas você não pode, tão facilmente, colocá-la novamente em suas dobradiças. Agora repita comigo: " Ser honesto é um ... ' "

"Sim, sim. É isso." Ser honesto é um hábito constante e ingrato. "

"Não se pode esconder ..."

"Não se pode esconder atrás da honestidade-"

"Goblins!" Fimarell estava no corredor de roupão, porta do quarto aberta.

Grenzo e Daretti trocaram olhares.

"Ladrões!" Fimarell gritou e bateu a porta.

Eles partiram atrás dele. Daretti atingiu a porta. Trancada. Ele olhou para Grenzo. Outro baque de sua bengala e a porta entrou em colapso.

O cientista humano estava na janela, gritando.

"Alguem me ajude!"

Ele virou-se em direção a eles, tremendo. "Vermes, goblin de rua! Este é um bairro respeitável e eu sou um homem respeitável!"

Daretti olhava incrédulo. Grenzo cutucou sua cadeira com a bengala. Daretti sacudiu-se e começou a abordar Fimarell, " Ser honesto é um hábito constante e ingrato. Não se pode esconder atrás de honestidade. Falsidade e perfídia são os maiores pecados para o cientista. E é a sina do honesto revelar as mentiras e levar os falsos à justiça ".

A cadeira de Daretti estendeu suas pernas mecânicas, içando-se fora de suas rodas e elevando-o até quase a altura do teto. Nas luzes piscando da rua, Daretti era como uma grande aranha descendo sobre sua presa.


O acadêmico encolheu-se no chão, choramingando.

"Você pode não lembrar meu nome, nem a minha cara, mas eu suspeito que você se lembra de minhas roupas e meu chapéu. Um dia, eu ocupei a minha estação com orgulho, como um agente da mais alta ordem do conhecimento, e engenharia, e verdade."

Seu tom de voz baixou.

"Mas você não sabe nada de tais virtudes."

A cadeira balançou o goblin para a frente, trazendo seus rostos próximos o suficiente para que Daretti pudesse ver as gotas de suor escorrendo nas rugas do rosto do velho homem.

"A academia sabe o seu nome muito bem. O seu nome foi escrito tantas vezes."

Ele levantou os papéis.

"Como aqui."

Fimarell ficou branco.

"Você reconhece isso? Você reconhece a caligrafia? Você criticou. Você criticou todas as minhas palavras, e, em seguida, apresentou-as como suas. Você construiu sua carreira na sombra das minhas palavras. Como você ousa nos chamar ladrões, seu m#$%@? "

A respiração de Daretti ficou pesada. Seus olhos se estreitaram. Ele amassou o topo da página do manuscrito e empurrou-o na boca de Fimarell.

Atrás deles, Grenzo chamou num tom exasperado

"Pare de enrolar, seu tolo verde! Isso é Paliano  - assassinato é como resolvemos as coisas. Mate-o logo e pronto."

Daretti e Fimarell entreolharam-se sem jeito.

Daretti respondeu.

"Será que você poderia, por favor, DEIXAR EU APROVEITAR O MOMENTO???"

Grenzo levantou as mãos.

"Tudo bem! Mas eu vou ficar tacando fogo no que aparecer pela frente, até você terminar."

Os olhos de Fimarell pulavam entre eles.

Daretti tentou recuperar a compostura ameaçadora.

"Eu ..." Ele gaguejou. "Eu ... a carreira que eu deveria ... onde eu estava?"

Fimarell cuspiu a página de sua boca. "O manuscrito que eu roubei de você ..." ele disse cautelosamente.

"Ah, sim", disse Daretti. "Bem ... é você quem é o ..."

Ele fez uma pausa.

"ah, f$$@-se...."

Daretti pegou as pernas de Fimarell e jogou-o e através da janela.

Ele caiu de dois andares, com um baque pesado na rua abaixo.

Daretti inclinou-se pela janela para ver o corpo inerte. O chão estava manchado de vermelho por baixo. Estava feito, então. Muito tempo tinha passado desde que ele era um jovem desesperado para compartilhar suas palavras com a academia. Ele tivera muito tempo para imaginar este momento, mas o momento se foi num piscar de olhos.

"Nada mal. Foi tão libertador quanto você esperava?"

Grenzo estava ao lado dele novamente. Ele segurava uma grande panela ornamentada debaixo de um braço e uma tocha acesa no outro.

"Eu acredito que poderia ter sido. Da próxima vez ... deixe-me terminar."

Grenzo levantou a panela. Ela estava cheio de lixo.

Daretti pegou as páginas de seu manuscrito e deixou-as cair dentro.

Grenzo deixou cair a tocha. O pote inflamou-se com um estalo.

"Uma última coisa." Grenzo levou a panela até a janela.


Lixo em chamas choveu na rua de paliano.

Em algum lugar na cidade, os fogos de artifício começaram novamente.

No andar de baixo, os servos de Grenzo já tinham feito a limpa e, agora, estavam quebrando os móveis. Depois eles amontoaram os pedaços nos cantos, com pilhas de papel e livros.

Um goblin derramava óleo sobre as pilhas.

Daretti e Grenzo desceram a escada. "Bem, bom trabalho, aluno. Você ainda será um verdadeiro goblin um dia."

Daretti recuou. "Aluno? Não, não, não. Vamos ser claros aqui. Você é apenas um capanga".

"Bah! Até parece! você é meu parça."

"Parça ?!"

"Chefe", interrompeu um dos lacaios goblins, segurando uma tocha. "Er ... chefes. Vocês estão prontos?"

"Vamos discutir isso mais tarde, Grenzo", disse Daretti. "Sim, por favor. Queime tudo."

As chamas pegaram rapidamente. O fogo crepitava, subindo pelas paredes. Daretti sacudiu a cabeça.

"Vamos para casa." Ele suspirou. "de volta pro esgoto".

"Quem é o próximo na sua lista?"

"O nome dele é Alendis. Disse-me que a Academia não era lugar para um goblin. Disse que eu era ruim para a reputação deles. Parece que o bastardo se juntou ao Custodi."

"Bem, se isso significa que ele está com Marchesa, então ele está na minha lista também."

 Grenzo saiu da casa para o jardim. Daretti o seguiu.

"Ok, velho rabugento. Que tal - braço direito?"

O ar crepitava. O fogo ardia por trás deles. Os goblins já estavam se espalhando em todas as direções.

"A rainha costumava operar nas sombras", disse Grenzo, olhando para o céu coberto de fumaça. "Ela conhecia o jogo. Ela controlava as facas. Agora ela tem sua cadeira confortável e tranca todas as portas à noite. Bom, pelo menos ela sabe como fazer uma festa."

"Acho que todo mundo sai das sombras, eventualmente."

"A gente devia entrar de penetra em um festa. Devíamos entrar de penetra em todas as festas."

No alto, a pirotecnia iluminava o céu em vermelhos, azuis e verdes.

Daretti abanou-se com uma mão.

A noite ainda estava muito quente.
Fonte: Ligamagic

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